No que respeita essencialmente aos cereais praganosos (trigo mole, trigo duro e cevada dística) “em Portugal, historicamente, sempre fomos deficitários na produção deste tipo de cereais mais ‘nobres’, destinados ao mercado de produtos para alimentação humana”, começa por explicar José Palha, presidente da ANPOC – Associação Nacional de Produtores de Proteaginosas, Oleaginosas e Cereais.
Remontando a um passado secular, José Palha aponta o fraco autoaprovisionamento deste tipo de produtos como uma das razões que impulsionou os Descobrimentos, e recorda a célebre campanha do Trigo do Estado Novo. A tentativa de colmatar as falhas a nível do abastecimento de cereais nacionais persiste assim “historicamente, pois somos sempre pouco produtores”.
Dito isto, o setor dos cereais em Portugal “é um setor complicado, porque aliada a esta dificuldade histórica, numa parte importante no nosso território não existem grandes alternativas às culturas de sequeiro”, esclarece o presidente da ANPOC. Em toda a área do interior do país, “que não tem água”, obrigatoriamente tem que se fazer sequeiro, incluindo cereais e também pastagem. Ora, “aquilo a temos assistido, nos últimos anos, é que muita área onde se produzia cereais passou a ser de pastagem cada vez mais extensiva, com tendência ao abandono, e neste momento 52% da superfície agrícola do território nacional é de pastagem”. Situação “preocupante”, conclui José Palha, e que leva a associação a valorizar os cereais nacionais, porque, embora sem grandes condições para a sua produção, Portugal tem a qualidade do produto, conseguida graças às reconhecidas condições do clima mediterrânico. O objetivo é “valorizar a produção nacional para que volte a ser interessante para o agricultor, em termos económicos, produzir cereais”, afirma. Para tanto, a ANPOC criou em 2017 a marca ‘Cereais do Alentejo’, que inclui hoje uma série de referências no mercado (de trigo, cevada, aveia e triticale) e que, em parceria com a Sonae, está atualmente a comercializar cerca de 8 mil toneladas de trigo. Sendo uma marca de associação, “obriga a uma série de critérios para os produtores poderem vender o seu trigo com este selo, e estamos até a trabalhar numa blockchain para que seja uma marca 100% fidedigna”, avança José Palha.
Mas Portugal produz menos do que o resto dos seus concorrentes diretos, e enquanto commodity, temos que concorrer com o mercado mundial”. Para dar uma ordem de grandeza, um trigo de outono-inverno nacional com acesso a água, em regadio, e com uma produção muito boa pode chegar a seis toneladas por hectare; na Bacia de Paris, sem nenhum tipo de irrigação, a produtividade média ronda as dez a 12 toneladas por hectare.
Quanto às consequências a retirar dos atuais desafios a nível geopolítico para o mercado dos cereais em Portugal, o presidente da ANPOC defende que ao contrário, por exemplo, da cultura do milho, em que a maior parte da produção “é para a alimentação animal e não consegue ter uma diferenciação, nós produzimos apenas cerca de 6% das nossas necessidades em trigo duro e trigo mole e, exatamente para tentarmos fugir desta volatilidade dos preços, tentamos criar uma marca e fazer um produto diferenciado”.
O grande objetivo, diz, “é criar valor para não estarmos tão dependentes da volatilidade dos preços”, tentando que os agricultores não fiquem tão sujeitos às questões geopolíticas. “Procuramos manter alguma estabilidade dos preços: quando sobem, como aconteceu com a invasão na Ucrânia, a marca tem que se impor para acompanhar o mercado, mas quando baixam temos de tentar que não caiam abaixo de determinado nível que impeça a rentabilidade da cultura”.
A ANPOC está a ultimar com o Ministério da Agricultura e demais associações do setor a estratégia ‘+Cereais’, “que deverá ser apresentada nas próximas semanas, ainda antes da data das próximas eleições”, segundo José Palha. “Estamos a trabalhar com o governo em uma série de medidas, por exemplo para ajustar o valor das ajudas na reprogramação do PEPAC ou fazer melhorias na construção de charcas e barragens, porque sendo uma cultura de outono-inverno aproveita muito a água da chuva”.
Estas medidas casam com a estratégia ‘Água que une’, que o governo apresentou recentemente, e com iniciativas a nível energético “que irão ser apresentadas brevemente e que ajudarão as culturas dos cereais praganosos, mas também do milho e do arroz”, garante. De resto, as três organizações que representam a fileira - ANPOC, ANPROMIS - Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo e AOP - Associação de Orizicultores de Portugal “estão a trabalhar nesta estratégia com o Ministério”, e José Palha espera que “uma ajuda da tutela” permita manter uma perspetiva “longe de pessimista” do mercado de cereais em Portugal.
José Maria Rasquilha, presidente da Comissão Executiva da CERSUL - Agrupamento de Produtores de Cereais do Sul.
Trigo mole só abastece 3% a 5% do mercado nacional
“A única solução para continuar a fazer cereais praganosos em Portugal é apostar em pequenos nichos de mercado que dificilmente a concorrência poderá ultrapassar”
Perspetivando o mercado de cereais como “extremamente complexo, uma vez que está globalizado a nível de vários continentes, da Austrália à Ucrânia, Rússia, Argentina, Brasil, Canadá e aos Estados Unidos, grande produtor”, o presidente da Comissão Executiva da CERSUL - Agrupamento de Produtores de Cereais do Sul explica que este “está de tal forma pulverizado e dividido pelo mundo fora que não há propriamente um país que tenha a expressão da produção, nomeadamente do trigo”. O que leva a que “vários fatores possam influenciar no seu preço”, sublinha José Maria Rasquilha.
A facilidade de compra do produto neste mundo globalizado “é muito grande”, o que faz com que “a concorrência com os trigos franceses, americanos, argentinos ou ucranianos chegue a Portugal e esteja muito facilitada pelas grandes empresas de brokers mundiais”, detalha o também vice-presidente da ANPOC. E “este preço globalizado, no fundo, determina o preço do mercado a nível mundial”, conclui.
Por isso, as grandes indústrias portuguesas, que essencialmente compram, são pouco dependentes do produto nacional, afirma ainda José Maria Rasquilha. “Para termos uma ideia, o trigo mole só abastece o mercado nacional em cerca de 3% a 5%, dependendo dos anos, o que quer dizer que essas empresas importam pelo menos 95% da sua produção de trigo mole panificável” (farinha para fazer pão e derivados de pão). “Isto limita muito os preços e limita muito a decisão em Portugal de se fazer determinado produto, porque não se sabe o que vai acontecer ao preço daqui a três meses, e há uma série de situações macroeconómicas que nos ultrapassam completamente, como as guerras, o petróleo ou a política norte-americana”, constata o presidente da CERSUL. Estes fatores têm vindo a modificar-se, nos últimos quatro ou cinco anos (desde a pandemia), e geram esta instabilidade de preços em termos de mercado mundial, lamenta.
Neste contexto, “a única solução, no nosso entendimento, para continuar a fazer cereais praganosos em Portugal é apostar em pequenos nichos de mercado em que dificilmente a concorrência nos poderá ultrapassar. Refiro-me, por exemplo, a trigos moles de altíssima qualidade, quando comparados a trigos moles alemães, embora com produções pequenas; refiro-me também a baby food, às farinhas que vão estar na base das papas para alimentar os nossos bebés, cujos trigos têm uma exigência muito grande de matérias ativas, nomeadamente de agroquímicos e pesticidas; ou à cevada portuguesa, com um potencial muito grande pela sua qualidade extraordinária e adaptabilidade à produção de malte, que é o principal ingrediente no fabrico da cerveja (e as maltarias portuguesas são, inclusivamente, grandes exportadores)”, detalha José Maria Rasquilha.
A convicção da CERSUL é que “temos de procurar estes nichos de mercado e aproveitar estas oportunidades”, centradas essencialmente no Baixo e no Alto Alentejo e também no Ribatejo, onde se situam terras aráveis com extensão para produzir em alguma quantidade. “Regiões estas que, como todos sabemos, com a instalação do Alqueva e de mais perímetros de rega e com a procura por terra arável, têm diminuído a qualidade do seu solo e têm-se subdividido para culturas permanentes (amendoal e, principalmente, olival) e para outras onde há alternativas mais atraentes”, aponta o presidente do Agrupamento de Produtores do Sul. “O que leva à diminuição da área arável”, conclui, recordando que os números oficiais do INE e do Ministério da Agricultura revelam que a produção de cereais praganosos e de milho tem vindo a diminuir ano após ano.
Não obstante, a CERSUL “acredita ainda muito na cerealicultura em Portugal e na produção de cereais praganosos”, garante o responsável, apelando “a que haja algumas ajudas para as culturas de cereais no interior do país”, as quais deverão ser articuladas com políticas de valorização destas regiões para fixar populações, evitar o abandono e a desertificação, prevenir fogos florestais, preservar áreas adjacentes (montados, etc.). “Temos de pensar na produção de cereais de uma forma integrada com a vida rural, a caça e o crescente turismo rural, não só no Alentejo, mas em todo o país”.
As ajudas à produção devem ser equacionadas “também ao nível de uma série de fatores em cadeia e de fatores em economia de escala que derivam da interioridade”, reitera José Maria Rasquilha, e este investimento deve ser feito com “políticas integradas do governo e da comunidade” nos setores da agricultura, da pecuária e do desenvolvimento regional do interior do país.
Defendendo que nos últimos anos a produção de cereais em Portugal “tem mostrado um crescimento unitário consistente, impulsionado por técnicas agrícolas cada vez mais avançadas”, o secretário-geral da ANPROMIS – Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo considera, no entanto, que “desafios como a variabilidade climática e os custos de produção continuam a ser preocupantes”. A que se soma “a crescente saída de inúmeras substâncias ativas que dificultam a proteção das nossas searas e colocam os produtores europeus numa situação de reconhecida desvantagem competitiva face a países de outros hemisférios, como os do Mercosul, onde continuam a ser utilizados produtos fitofarmacêuticos há muito proibidos na Europa”, acusa Tiago Silva Pinto.
Na sua opinião, a transformação de cereais para a alimentação humana (gritz) tem ganho, nos últimos anos, destaque face a outras utilizações, o que se deve, em grande parte, “não só à reconhecida qualidade dos cereais produzidos em Portugal, como também à implementação de padrões rigorosos de controlo de qualidade”.
Tiago Silva Pinto, secretário-geral da ANPROMIS – Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo.
A inovação tecnológica “é, sem dúvida, um fator determinante para o futuro do mercado de cereais”, com a adoção de tecnologias de agricultura de precisão e o melhoramento genético de sementes a transformarem “a eficiência e a produtividade das nossas searas”, afirma o secretário-geral da ANPROMIS. Estas inovações “não só aumentam a produção, como também reduzem o impacto ambiental, o que é fundamental para a sustentabilidade a longo prazo”, sublinha ainda.
Porém, “há desafios significativos que não podem ser ignorados”, reitera Tiago Silva Pinto: “a volatilidade dos preços dos cereais no mercado internacional, as incertezas quanto à geopolítica mundial, as constantes mudanças nas políticas agrícolas europeias e a necessidade de adaptação às novas regulamentações ambientais” são disso exemplo.
Mesmo neste contexto de incerteza o responsável da ANPROMIS afirma-se otimista quanto ao futuro do mercado de cereais em Portugal: “com a colaboração contínua entre produtores, investigadores e legisladores acredito que podemos superar estes obstáculos e garantir um crescimento sustentável e próspero para o setor agrícola”. Afinal, “o mercado de cereais está num ponto crítico de transformação, muito condicionado pela geopolítica mundial, onde as oportunidades e os desafios coexistem”, conclui.
É, pois, “essencial que continuemos a investir em inovação, a promover práticas sustentáveis e a fortalecer as redes de comércio nacional e internacional para garantir que o setor não só sobreviva, mas floresça nas próximas décadas”. Neste sentido, a estratégia ‘+ Cereais’ constitui “um importante instrumento de política agrícola que se revela fundamental para alcançar o necessário aumento da produção de milho em Portugal”, conclui o secretário-geral da ANPROMIS.
Pedro Pimenta, Presidente da Cooperativa Agrícola de Coimbra.
Ajudas no setor do milho fundamentais para soberania alimentar da Europa
“Os desafios serão enormes e devem fazer-nos refletir sobre a PAC que queremos hoje numa Europa em guerra”
A exploração média de um produtor de milho no Mondego “não ultrapassa os dez hectares”, e o rendimento desta atividade agrícola “é visto como um complemento ao agregado familiar”, com muitos agricultores a desenvolverem as suas operações culturais do milho nos seus tempos livres. Perante esta especificidade da região, e como contextualiza Pedro Pimenta, presidente da Cooperativa Agrícola de Coimbra, “o trabalho e a confiança dos agricultores nas suas organizações de produtores, como a Cooperativa de Coimbra, são fundamentais não só no apoio técnico permanente na preparação, instalação e desenvolvimento da cultura, como em toda a logística de colheita, secagem, armazenagem, expedição e negociação conjunta do milho grão dos seus associados”.
Resistindo à tentação de fazer o balanço do ano em comparação com o anterior, “e apesar da campanha de 2024 não ter sido positiva, muito por culpa de uma praga (‘nanismo’) que nos retirou cerca de 15% de produtividade, Pedro Pimenta observa que, se olharmos ao conjunto das últimas três campanhas de colheita de milho, podemos dizer que, em média, foram positivas”.
“No seio da incerteza em que se vive neste ‘planeta’, julgo que ninguém se atreve a adivinhar” as perspetivas para 2025, comenta o também vice-presidente da CAP e diretor da ANPROMIS. “Mas existem certezas”.
Uma das quais “é que vivemos noutra era, onde as nações belicistas e as guerras comercias irão reconfigurar as prioridades das nações e dos seus continentes”, esclarece. “Os desafios serão enormes e devem fazer-nos refletir sobre a PAC que queremos hoje numa Europa em guerra”. A este propósito o presidente da Cooperativa Agrícola de Coimbra alerta ainda que “os ideais, ambições e metas a atingir, gizados nos últimos cinco anos, não serão certamente os mesmos perante as circunstâncias de hoje”, apelando a que “haja coragem política para assumir que as ajudas ao rendimento ligado à produção de alimento e criação de emprego em setores como o milho e outros, que dinamizam a economia local, que exportam, são fundamentais na soberania alimentar da Europa”.
Recentrar a imagem do ‘agricultor jardineiro paisagístico’ dos últimos anos na do ‘agricultor produtor de comida’ “será o inevitável caminho”, acredita Pedro Pimenta. A outra certeza do diretor da ANPROMIS “é que os agricultores não deixarão de semear os seus terrenos para produzir alimento, isso é uma garantia que o consumidor pode ter”. E neste cenário, o milho é “a cultura onde a inovação tecnológica tem tido maior visibilidade, sempre numa ótica de sustentabilidade económica, social e ambiental”, defende.