Agricultura biológica
Notícias do passado da produção biológica vegetal e o caminho do BPGV no seu futuro
Ana Maria Barata
Instituto Nacional Investigação Agrária e Veterinária, I.P., Portugal - BPGV
Violeta Lopes
Instituto Nacional Investigação Agrária e Veterinária, I.P., Portugal - BPGV
21/03/2023Neste artigo, fazemos um ponto de situação sobre as origens e a evolução da agricultura biológica em Portugal e no mundo, bem como o papel do Banco Português de Germoplasma Vegetal para o seu futuro.
A agricultura biológica, tal como hoje é entendida, resultou da conjugação de diversos métodos alternativos de produção agrícola que foram sendo desenvolvidos, principalmente na Europa, desde o início do século XX. Foram vários os movimentos percursores deste modo de produção agrícola. O primeiro surgiu na Alemanha, nos anos 20, baseado na teoria filosófica de Rudolf Steiner. Um segundo movimento, baseado na agricultura orgânica, surgiu em Inglaterra, no período após a Segunda Guerra Mundial, a partir dos trabalhos de Sir Howard. Ainda nos anos 40 surge um terceiro movimento, localizado na Suíça, com base nos trabalhos de Hans Peter Rush e H. Muller.
Apesar da relevância destes movimentos e da sua propagação, os anos 50 correspondem a uma estagnação da agricultura biológica, uma vez que corresponde a uma fase de crescimento económico em que as atenções se concentravam em melhorar e aumentar a produção, o que se veio a traduzir na intensificação dos processos agrícolas.
Nas décadas de 60 e 70 assiste-se a um novo impulso na produção biológica, principalmente nos países da Europa do Norte, associado, em grande parte, à emergência de movimentos ecológicos e outros movimentos alternativos. Com o aumento da procura, motivada por questões de saúde e ligadas à proteção do ambiente, a década de 80 serve de palco à continuidade do seu desenvolvimento.
Diferentes nomenclaturas
Apesar do crescente interesse e importância da agricultura biológica, o significado do termo manteve-se durante muito tempo pouco claro. E inclusive deparamo-nos com diferentes nomenclaturas: em Portugal, e na generalidade dos outros países, é conhecida por “agricultura biológica”; no Brasil e nos países de língua inglesa é denominada “agricultura orgânica”, enquanto que em países como Espanha e Dinamarca se fala em “agricultura ecológica” e no Japão em “agricultura natural”.
A agricultura biológica caracteriza-se por possuir uma base ecológica, holística e socialmente responsável. Tem como propósito permitir aos agricultores uma melhor valorização das suas produções e dignificação da profissão, bem como a possibilidade de permanecerem nas suas comunidades; garantir aos consumidores a possibilidade de escolherem consumir alimentos de produção biológica, sem resíduos de pesticidas de síntese e, por isso, melhores para a saúde humana e para o ambiente. Contudo, não se pode considerar uma “agricultura sem químicos ”.
Hoje, a agricultura biológica representa o único método de produção agrícola definido e regulamentado com rigor, comportando soluções para problemas ambientais, económicos e sociais dos nossos dias.
Contextualização na Europa
Permitir às pessoas envolvidas na produção biológica uma qualidade de vida conforme a Carta dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de maneira a cobrir as suas necessidades básicas e obter um adequado rendimento e satisfação no trabalho realizado, é uma meta.
Estas práticas agrícolas nos países desenvolvidos têm vindo a ser subsidiadas, de forma crescente, pelos seguintes fatores: problemas de poluição do solo, água e alimentos com nitratos e pesticidas; degradação da qualidade do solo; efeitos negativos da aplicação de pesticidas na saúde dos agricultores e comunidades rurais e resistência crescente das pragas aos pesticidas. Por todos estes motivos, a agricultura biológica tem vindo a ganhar uma importância crescente em muitos países, independentemente do seu grau de desenvolvimento.
Antes que a Política Agrícola Comum (PAC) refletisse alguma preocupação de intervenção no âmbito da agricultura biológica, já países como França haviam criado legislação nacional sobre a produção e certificação e sobre programas de apoio.
Em 2018, os países com mais mercado nos produtos biológicos foram os Estados Unidos da América (40,6 mil milhões de euros; 42%), Alemanha (10,9 mil milhões de euros) e França (9,1 mil milhões de euros). A União Europeia representa 38,5% (37,3 mil milhões de euros) e a China 8,3% (8,1 mil milhões de euros).
Em Portugal, o mercado de produtos biológicos apresentou, em 2011, o valor de 21 milhões de euros (IFOAM, 2019). A União Europeia, o segundo maior mercado do mundo para os produtos biológicos, em 2018 importou um total de 3,3 milhões de toneladas de produtos biológicos. Relativamente aos mercados, o mercado de produtos biológicos da UE está a ser impulsionado por um aumento constante da procura, tendo-se desenvolvido significativamente (19,7 mil milhões de euros, com uma taxa de crescimento de 9% em 2011).
O progresso contínuo, cuja intensidade se acentuou após 1992 ao abrigo das medidas agroambientais que constituem as Medidas de Acompanhamento da Reforma da PAC de 1992 (Reg. 2078/92 de 30 de junho), está relacionado com os apoios financeiros às produções biológicas, bem como às ajudas direcionadas para o desenvolvimento rural. Em 1991, a comunidade económica europeia publicou o regulamento que define as normas de produção, controlo e rotulagem de produtos agrícolas, vegetais de agricultura biológica (Reg. n.º (CEE) n°2092/91).
Em 2014, a UE apresentou o Plano de Ação para a Produção em Modo de Produção Biológico (MPB), a fim de garantir o crescimento sustentado da oferta e da procura, mantendo a confiança do consumidor, definindo três prioridades:
1) Aumento da competitividade dos produtores em MPB;
2) Aumentar e consolidar a confiança dos consumidores na agricultura e nos alimentos em MPB, assim como a confiança nos produtos biológicos importados;
3) Reforçar a dimensão externa do sistema de produção em MPB da UE (EU Commission, 2014).
A percentagem de terras agrícolas da UE em agricultura biológica aumentou mais de 50% no período 2012-2020, com um aumento anual de 5,7%. Em 2020, 9,1% da área agrícola da UE foi cultivada organicamente.
Agricultura biológica em Portugal
As primeiras experiências datam dos anos 50 e têm como pioneiro Luís Alberto Vilar, mentor e fundador da União Fraternal de Agricultores. Em 1976, começou a divulgar a agricultura biológica através de artigos que publicava no “O Século” e na coleção “Agro-Sanus”.
Em 1985 é fundada a AGROBIO – Associação Portuguesa de Agricultura Biológica. Até muito recentemente, foi a principal instituição responsável pela difusão da atividade e pela promoção da produção, sobretudo através do estímulo à troca de experiências e da disseminação de informação entre agricultores e consumidores.
Apesar de existir produção certificada em Modo de Produção Biológico (MPB) em Portugal desde 1986, os primeiros registos oficiais datam de 1994, com a aprovação do Reg. n.º (CEE) n°2092/91, alargado à produção animal e produtos de origem animal, em 2000, e aos alimentos para animais, em 2003, Reg. (CE) n.º 1804/99 e Reg. (CE) n.º 203/03.
Em Portugal, a agricultura em MPB só começou a ter algum significado nas duas últimas décadas. Até à década de 80 do século XX, as produções em MPB restringiam-se a áreas/efetivos reduzidos, sendo a produção de alimentos biológicos maioritariamente desenvolvida por estrangeiros, para autoconsumo, e/ou voltada para a exportação, com destino ao mercado dos seus países de origem.
A evolução da produção em MPB é reflexo de duas forças predominantes: os apoios das medidas agroambientais e a procura dos consumidores. Os referidos apoios, especialmente a partir de 1997, estão na origem do desenvolvimento das culturas extensivas, como o olival, culturas arvenses e frutos secos e, mais tarde, as pastagens, cujos montantes eram mais atrativos. A procura dos consumidores foi o principal motor, no caso das culturas mais intensivas, como a horticultura, a fruticultura e, em menor grau, a vinha.
Em Portugal, a agricultura em MPB está concentrada maioritariamente nas regiões do Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes, tanto em área, como em operadores, uma tendência sempre verificada desde 1994. No conjunto, estas regiões, correspondentes a todo o interior do país, concentram 66,5% dos operadores e 84% da área.
As principais culturas no Alentejo e Beira Interior são as pastagens, culturas forrageiras e olival. Em Trás-os-Montes, destaca-se o olival e os frutos secos, sendo ainda nesta região que se localiza a maior área de vinha biológica.
Verifica-se o grande dinamismo da apicultura (maior em Trás-os-Montes), com uma taxa de crescimento média anual do efetivo de 51,5%. É uma atividade fortemente dependente do meio envolvente, cuja produção é condicionada pelo tipo de sistemas de produção agroflorestal locais, e é um excelente exemplo da necessidade da aplicação de uma visão holística, por forma a potenciar o desenvolvimento do MPB.
O Alentejo é a região onde todas as culturas, com exceção da vinha, apresentam maior representatividade na ocupação cultural das explorações em agricultura biológica.
Caminho do BPGV na agricultura biológica
O Banco Português de Germoplasma Vegetal (BPGV) no seu histórico, enquanto elemento integrado na DRAPN e, a partir de 2008, no INIAV I.P., em tempos mais presentes tem participado em diversas iniciativas que atestam com a promoção do MPB e na facilitação da sua aplicabilidade a um nível mais regional e, atualmente, com uma abrangência ao nível das estratégias, divulgação e aplicação de políticas. Cronologicamente, enquadra-se o caminho do BPGV com exemplos de participação e/ou intervenção.
Avaliação de variedades biológicas de repolho.
Variedade selecionada para nabo roxo.
Anos 90
O Programa AGRIS - Medida Agricultura e Desenvolvimento Rural dos Programas Operacionais Regionais pretendeu garantir a promoção e o desenvolvimento das zonas rurais, nomeadamente através da preservação e valorização de pequenos aglomerados populacionais rurais e da melhoria das condições de vida e do bem-estar da população.
Numa candidatura apresentada à Ação 8 - Dinamização do Desenvolvimento Agro-Florestal e Rural, parceria entre a DRAEDM, PNPG, IDARN e ADERE Peneda Gerês, levou à instalação, em Covide, de um campo experimental de plantas aromáticas e medicinais, através do qual foi possível estudar a instalação, manutenção e produção de algumas espécies de plantas aromáticas. Congregou, além doutras intervenções, trabalho desenvolvido durante um ano e meio na área do Parque Nacional da Peneda Gerês e área limítrofe.
No Parque Nacional da Peneda Gerês, foi no concelho de Terras de Bouro, nas Freguesias de Vilar da Veiga, Rio Caldo e Covide, que se desenvolveu este projeto, incindindo sobre a produção de Plantas Aromáticas e Medicinais em MPB.
A maior dificuldade sentida na exploração agrícola gerida pela Fundação Calcedónia foi a falta de mão-de-obra especializada na produção das PAM em MPB, pois estavam em causa muitas espécies com necessidades produtivas diversas e dificuldades com a secagem, tornando-se difícil escalonar a secagem para o volume produzido num curto espaço de tempo. Quanto à distribuição e comercialização dos produtos também se registaram dificuldades, que podem ser minimizadas pela interação entre os diversos agentes de produção e venda.
Anos 2000
Estes são alguns dos projetos e estudos em que o BPGV participou:
Projeto PAMAF 0036 - Caderno da Peneda (2000-2004) Foi abordada a questão dos produtos locais e qualidade e o MPB foi tema de uma formação para técnicos, mais uma formação para técnicos em Agricultura Biodinâmica.
Projeto Interreg – UTILMONTE (2000-2006) Definição de critérios para valorização e otimização da utilização comercial de recursos naturais agroalimentares obtidos nas condições e sistemas de produção da zona transfronteiriça do Alto-Minho / Baixa-Lima. A Região Gerês-Xurês foi objeto de análise do projeto UTILMONTE quanto à sua viabilidade para ser classificada como região demarcada de produtos de qualidade, onde a participação do BPGV se deu na implementação da região pelos produtos de qualidade e/ou pelo método de agricultura biológica.
Terras de Bouro: Estudo e caracterização dos produtos locais (2003) O BPGV participou em representação da DRAEDM na elaboração do estudo da responsabilidade do município de Terras de Bouro.
Terras de Bouro – Projeto-piloto para a conversão da agricultura tradicional em modo de produção biológico – onde foi produzido o Manual de Agricultura Biológica – Terras de Bouro, editores Isabel Mourão, José P. Araújo e Miguel Brito (2006) e onde o BPGV, enquanto unidade da DRAEDM, participou na concretização do projeto.
Projeto AGRO800 (2004-2007) - “Rede Nacional para a Conservação e Utilização de Plantas Aromáticas e Medicinais”. No quadro do projeto, entre outras dinâmicas, foi realizado um documento onde se apresentaram as “Contas de Cultura para as Plantas Aromáticas e Medicinais”.
Como unidade do INIAV I.P.
*2º Encontro de Compostagem Doméstica (2013). Organizado pela Valorlis, NERLEY - Associação Empresarial da Região de Leiria, com a comunicação de Filomena Rocha (BPGV) sobre “Hortas e Biodiversidade: A importância das hortas para perpetuar as sementes”.
*Terra Sã (2014), 28-30 de novembro, no Porto, sob o tema “As Sementes e o Nosso Futuro Comum”, no Palácio de Cristal, com a comunicação de Ana Maria Barata (BPGV) intitulada “Conservar o presente garantindo o futuro”.
*III Encontro Agro-ecológico sobre sustentabilidade (2016) - O evento decorreu a 22 de abril, em Coimbra, resultado de uma iniciativa conjunta da Escola Superior Agrária de Coimbra (ESAC), e a Associação Portuguesa de Agricultura Biológica (AGROBIO), contando com a participação de estudantes, professores e profissionais do sector agroalimentar, com a representação de agricultores, técnicos de ONGs e outras entidades da sociedade civil.
O seminário foi dividido em 5 painéis: Internacional das Leguminosas; Estratégias para o Desenvolvimento da Agricultura Biológica em Portugal; Agropecuária Biológica; A Política Agrícola Comum e as Inovações de Mercado, Emprego e Empreendedorismo em Agricultura Biológica. O representante da FAO Portugal e junto da CPLP foi convidado a fazer uma apresentação sobre “Os Sistemas Alimentares Modernos e a Agricultura Biológica”, tendo realçado alguns dos mais importantes desafios, entre os quais a demografia, fome mundial, globalização, mudanças climáticas, volatilidade de preços e urbanização.
O seminário contou com outras individualidades da academia e da sociedade civil como palestrantes, sendo representante do INIAV Ana Maria Barata (BPGV). Uma das mensagens mais vezes mencionada ao longo do seminário foi a necessidade de envolver todos os atores dos sistemas agrários, particularmente os agricultores, que necessitam de formação, oportunidades de crédito e melhoria das condições de acesso ao mercado.
*Participação nos encontros promovidos, com o propósito de divulgar a Bioregião nos diversos quadrantes, pelo município de Idanha-a-Nova. Este município implementou a primeira região biológica do país.
*Projeto BIO-REGIÃO Alto Tâmega (2018-2022) – BPGV com participação na conceção, conceitualização do projeto e nas dinâmicas de workshops desenvolvidos nos concelhos envolvidos.
*Protocolo entre INIAV, I.P. e Living Seeds Sementes Vivas SA “Melhoramento e desenvolvimento de variedades do Género Brassica” (2018-2021) – O objeto do protocolo foi a obtenção de sementes biológicas de variedades locais de Brássicas a partir de variedades tradicionais conservadas no BPGV, com o propósito de disponibilizar no mercado de semente nacional segundo regras do CNV. Além da entrega de cinco variedades selecionadas - três de B. rapa, uma de B. napus e uma de B. oleracea – foi experimentada uma proposta de inovação, de produto fresco a partir destas variedades, com o aproveitamento de microgreens e babyleaves para a 4ª GAMA.
Brassica napus: Isolamento para obtenção de semente biológica.
BPGV e a agricultura biológica
O INIAV I.P., através do BPGV, está representado no Centro de Competências da Agricultura Biológica e dos Produtos no Modo de Produção Biológico e no Observatório Nacional da Produção Biológica, coordenado pela DGADR.
O BPGV no caminho da agricultura biológica mantem-se ativo porque os resultados na sua implementação expõem a capacidade da agricultura em MPB de se desenvolver no país, desde que a dimensão da exploração não seja um fator condicionante para que o agricultor possa investir em tecnologia e ter economia de escala. Considera, também, que há condicionalismos associados aos custos de fatores de produção e, entre outros, a disponibilização de sementes biológicas de variedades locais, que permitirão a obtenção de produtos de qualidade genuínos.
Nabo branco da linha selecionada.
Outras limitações relacionam-se com a necessidade de mão-de obra que, em certa medida, poderá ser ultrapassada com a evolução do mercado das máquinas agrícolas, que tem apresentado a ritmo interessante.
Atualmente, a rotulagem é uma questão a estudar e clarificar. A IFOAM Organics Europe e outros movimentos biológicos referem que o uso diminutivo “Eco” - rotulagem ambiental de produtos alimentares - é suscetível de causar confusão aos consumidores. A governança deverá estar atenta ao sucesso de medidas que sustentam a procura, formação, apoio técnico, preços, organização e associativismo, circuitos de comercialização, certificação e promoção dos produtos biológicos.
O apoio da UE foi importante para a conversão e será crucial para que as áreas ainda em conversão sejam convertidas em agricultura biológica. Este apoio é também importante não só em termos financeiros, mas a nível da formação dos agricultores.
O Plano Estratégico da PAC (PEPAC 2023-2027) contempla a organização com a criação de agrupamentos e de organizações de produtores, a inovação com a criação de grupos operacionais, o apoio ao conhecimento e à promoção dos produtos de qualidade.